FILHOS: a soma das partes é maior que o todo III

Parece não ser por acaso a existência de um período gestacional relativamente longo para a espécie humana.  Nove meses podem ser longos demais ou, de maneira oposta, extremamente curtos. Para casais estáveis e preparados, esse tempo pode ter sido uma eternidade. Do contrário, caso as experiências vividas não tenham sido suficientes para consolidarem essa nova realidade, a expressão mais comum pode ser: “parece que foi ontem que descobrimos”.  O fato é que este tempo existiu e, tendo sido suficiente ou não para todos os amadurecimentos necessários, não voltará mais. Os ajustes ainda faltantes deverão acontecer empiricamente, sabendo-se dos possíveis desgastes do método tentativa e erro. Uma sensação não rara pode ser a insegurança, mesmo que todo o script tenha sido seguido até aqui. Treino é treino e jogo é jogo. Não há ensaios senão experiências anteriores, caso tenham existido. Talvez, nem nos casos em que existiram, estas experiências possam evitar sensações e emoções inéditas, notadamente mais frequentes "nos debutantes". Prontos ou não, é chegada a hora!
Delegando-se à medicina os devidos acompanhamentos clínicos e procedimentos médicos e, utilizando-nos de casos sem maiores turbulências, partamos para experiências e sentimentos pós-parto. As primeiras emoções parecem buscar equilíbrio em meio aos sentimentos de insegurança e ansiedade que ainda teimam em perdurar. Diferentes focos merecem atenção: a confirmação do bem-estar da mãe, a obrigação de comunicação on-line aos familiares e amigos, o aparente deslocamento do pai e, naturalmente, a imperativa curiosidade pelo filho. Curiosidade parece ser realmente um adjetivo sensato para a mistura de sentimentos e emoções confusas que, na prática, surgem em turbilhão do mundo das ideias.
Por vivermos em comunidade, não seria prudente negarmos que influências são recebidas e exercidas ao longo dos anos. Seguimos, com maior ou menor aderência, regras tácitas de convivência, relacionamento e comportamento. Algo como se fôssemos expostos a gabaritos sociais, aos quais podemos ser flagrados validando nosso dia a dia e gerenciando a satisfação ou a autopenitencia pelo resultado conferido. No entanto, as primeiras vivências parecem compor um período de experiência, no qual erros e acertos são conhecidos, mas não produzem maiores consequências.
Mesmo que seja herdado um conhecimento social mandatório, que provavelmente tenha definido desde estrutura familiar ideal à sentimentos esperados, nem tudo pode estar tão claro e definido. A delimitação de territórios e até de papéis parece estar mais estruturada na concepção e decoração do quarto do bebê do que em qualquer outro âmbito no novo convívio a três. Por mais que tenha sido previsto um período de acomodação, os primeiros momentos podem remeter a uma inquietação, beirando a incerteza, com relação às coisas estarem realmente dentro da normalidade. Provavelmente os momentos de alegria sejam maioria, mas a falta de respostas para algumas situações parece trazer desconforto e ansiedade. O tempo pode ser o catalisador deste processo.
A repetição tende a levar ao aperfeiçoamento. Quando se fala de sentimentos, vivenciar situações repetidas vezes pode proporcionar mais sabedoria para lidar com as mais complicadas. Impreciso dizer se devido a um amadurecimento ou a um comodismo, pois ambas as possibilidades parecem reduzir o estresse e a tensão, fazendo com que haja mais tranquilidade nestes enfrentamentos.
Uma questão que merece ser lembrada, até com maior relevância, é a frustração que pode acometer o casal. Sinceramente parece ser uma expressão bastante forte e, caso não haja maturidade e discernimento bem evoluídos, pode ser vista como absurda ou até, em extremo, como heresia. Uma nuvem de incertezas parece dar lugar a uma busca pelo que ainda não se conhece, mas já se esperava. Talvez a confusão tenha sido originada pela expectativa gerada, pois não seria possível prever todas as reações e sentimentos de algo tão novo e tão diferente. Tarefa difícil também seria tentar descrever o que acontece, em uma narrativa simples com começo, meio e fim.  Sendo ousado, pode-se dizer que uma frustração parece vir da ausência de sinergia, sintonia e harmonia na nova família.
Há um estranho entre nós. Novamente parece ser uma afirmação absurda que, se isenta de julgamentos e juízos de valor, pode fazer algum sentido, afinal é literalmente uma convivência social que se inicia. Uma autocobrança pode imperar no casal de primeira viagem, especialmente na mãe, que deve ter sido ensinada que os sentimentos e afeições para com o filho são inatos. É fato que devemos ser, como seres sociais, ensinados a amar e a cuidar dos filhos em quaisquer condições. O objetivo não é jogar tal lição por terra, mas entender seus preceitos e seus desdobramentos.
Naturalmente, desde que seja voluntária e consciente, a decisão por se ter filho é tomada pelo casal com plena convicção de que a alegria e a satisfação deverão se suceder, mesmo se consideradas as dificuldades e intempéries que também seriam consequentes. Mantendo-se o foco nas emoções e sentimentos iniciais, os primeiros momentos após o nascimento do filho podem ser mais complexos do que se esperava. Além de lidar com a chegada de alguém com total dependência, o casal convive ainda com alguns pensamentos recorrentes que parecem buscar luz diante da realidade e insistem em confundir seus sentimentos. A pergunta: “eu não deveria amá-lo desenfreadamente e, em consequência, estar radiante e feliz?” pode, de maneira fria e racional, resumir este conflito. Sem despender tempo em julgar valores ou razões, mantenhamos o foco nos sentimentos que, por serem sentimentos, não são racionais.
Novamente parecem sobrar efeitos das expectativas geradas. Não é objetivo questionar o sentimento inato, pois a própria decisão pela gravidez seria prova de sua existência. Inclusive na esfera social é sabida e amplamente divulgada a imperiosa obrigação deste amor. O fato é que são questões não palpáveis e, como seres racionais, somos também regidos pelo literal, pelo real, pelo inquestionável. A busca por vestígios substanciais de sentimentos em relação ao filho acaba impedindo de se perceber o momento com a serenidade e a sutileza necessárias. Como humanos, dúvidas e medos perpassam também pelos pensamentos dos pais, sendo precipitada qualquer cobrança pela sua exatidão.
Todo novo convívio social passa por períodos clássicos, como: primeiras impressões, reconhecimento de semelhanças e diferenças, simpatias, antipatias, afinidades ou repúdio individual ou do grupo. O que não parece ser tolerável é que estas etapas façam parte também da chegada do filho. A harmonia entre pais e filho já não deveria estar presente antes mesmo de sua chegada? A mãe já não deveria entender plenamente o filho e assim conter seus momentos de aparente desespero diante de seu novo mundo? Por que não é sentido em plenitude o tão falado amor incondicional, capaz de cegar ações e reações, garantindo entrega total ao filho? Por mais que seja uma relação carnal e que deve durar por toda a vida, a chegada do filho pode passar por assimilações sociais e até acomodações de papéis. Novamente sendo ousado, poder-se-ia sugerir que inata é somente a obrigação inquestionável de amar e cuidar do filho, advinda de forte convívio em sociedade, que nos imputa verdades transcendentais. Pelo menos raciocínio, concluir-se-ia que o amor ganha força com o convívio em si, com as experiências e com as relações que se iniciam.
Então, em exercício racional, pode-se elaborar que a opção por se ter filho é uma troca (in)consciente de rotinas conhecidas do casal por situações apenas imagináveis e incertas. Por mais que a troca neste caso seja consciente, essa expressão parece remeter a uma situação fria e desprovida de sentimentos, o que não é o caso. Portanto, só se aplica porquê de fato acontece um abrir mão de algo conhecido por uma nova vida que, mesmo sendo imprevisível, acredita-se que as recompensas sejam consequências líquidas e certas.
Não se sabe por onde começar, mas parece ser preciso buscar respostas prontas. A ansiedade pode agravar o cenário, por trazer um tempero acelerado de desconforto e angústia. Mesmo que não se saiba exatamente as origens destes sentimentos e as raízes de seus conflitos, eles podem ser suficientes para desequilibrarem os primeiros dias da nova família. Por mais que as respostas possam existir, admitir que as primeiras relações com o filho podem não ser tão harmoniosas não é simples, mas talvez seja um exercício válido para evitar frustrações ou sentimento de culpa desnecessariamente, entendendo todo o processo como uma maturidade adquirida e aprimorada pela prática. Esse discernimento precisa acontecer para que não seja mal interpretada essa momentânea acomodação de papéis e sentimentos que, naturalmente, dará origem a relações sólidas, intensas e certamente satisfatórias.

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